Vila Verde: A história de Rui Manuel: de escravo físico a escravo de um sistema (ainda) inadequado? (Via Jornal Expresso)



Durante os últimos meses, o Tribunal Judicial de Vila Verde julgou o caso de um homem com deficiência mental - hoje com 36 anos - que durante 24 anos foi maltratado por uma família que o tinha à sua guarda desde os seus 6 anos.

Segundo o Ministério Público, Rui Manuel foi retirado da escola, e nunca aprendeu a ler nem a escrever: ao invés trabalhava de modo forçado no campo, de sol a sol. Durante anos dormiu num anexo sem condições, estando proibido de entrar na casa da família, onde não podia sequer usar a casa de banho ou a cozinha. Não podia comer à mesa da família e por isso comia as sobras de tigelas e panelas velhas, na rua. Ficou ainda provado que Rui Manuel lavava o chão com produtos químicos, sem protecção de luvas e quando foi libertado as suas mãos estavam quase fechadas, devido a feridas consecutivamente mal curadas: apesar dos ferimentos, o MP apurou que a vítima só consultou um médico, da confiança da família, em 1994 e com o objectivo de lhe ser concedida reforma por invalidez, que era depositada na conta bancária do seu primo mais velho. No resto a vulnerabilidade psico-social da vítima levou a que nunca tentasse fugir, durante o seu cativeiro forçado.

Esta situação decorre directamente de um sistema de investigação criminal, e de um sistema penal, ainda pouco desenvolvidos e pouco aptos a lidar com este tipo de casos de tráfico e exploração, que envolvem em si mesmo várias dimensões de análise, que devem ser interpretadas de modo integrado e conjunto. Decorre inclusivamente de alguma insensibilidade por parte das autoridades judiciárias e penais para a temática: o crime de escravidão não foi provado porque a vítima "acompanhava os arguidos nas situações festivas e em momentos especiais", como se isso atenuasse o tratamento cruel a que foi submetido, e que foi largamente descrito durante a leitura da sentença. De facto serviu como atenuante, mas para os elementos exploradores, que foram condenados por maus tratos e não por escravatura, num cúmulo de pena suspensa. Justo ou não, o certo é que não existe moldura penal que possa reverter a larga temporada que Rui Manuel passou como mero utensílio de trabalho. Nada que possa reverter o tempo, devolvendo-o à condição de criança que nunca experienciou. Nada que possa apagar os maus tratos físicos, e as marcas corporais, e psicológicas que ostenta.

O problema é em parte sistémico, mas deveremos ter em conta o medo da própria população em denunciar este tipo de situações, sinal evidente de um país de "brandos costumes", e pouco consciencializado para uma temática tão grave quanto o tráfico humano e a exploração. É incompreensível que tenham sido necessários 24 anos para alguém exercer o direito, e dever de denúncia, libertando este homem do seu jugo. Quantos mais casos como este poderão existir em Portugal, carecendo de denúncia? A haver conhecimento de casos deste tipo, os mesmos não podem ser tratados com ligeireza, ou desdém: estas ofensas dizem respeito a toda a sociedade, porque se constituem como atentado ao seu bom funcionamento, devendo ser imediatamente denunciados às autoridades competentes, malgrado factores como o medo, o receio, as represálias, ou o próprio costume enraizado.

Como modo de minimizar esta grave situação Rui Manuel, foi colocado à guarda de nova família de acolhimento. Conta com orgulho que já frequenta a 3ªclasse da escola básica, já sabe ler, escrever e até fazer "trocos". É tratado como um ser humano, finalmente. Ali poderá criar raízes e ser apoiado, e esperemos que a partir deste momento possa realmente experienciar toda a felicidade que lhe foi sonegada ao longo de décadas. Esperemos ainda que Rui Manuel não passe de escravo físico a escravo do sistema penal, através de sucessivos recursos e apelos de pena, que apenas agravarão o seu sofrimento e as reminiscências de algo que nem por um dia deveria ter ocorrido.

Boa sorte Rui.


Fonte Jornal Expresso por Sandro Marmelo

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